PEU Vargens, ainda há tempo?

PEU Vargens, ainda há tempo?
Andréa Albuquerque Garcia Redondo


No último dia 3 a Câmara de Vereadores do Rio aprovou projeto de lei que muda as regras urbanísticas dos bairros de Vargem Grande, Vargem Pequena, Camorim, e de parte dos bairros de Jacarepaguá, Barra da Tijuca e Recreio dos Bandeirantes, região extensa equivalente a pelo menos 5 vezes o território de Copacabana, Ipanema e Leblon, ou cerca de 10 vezes a área do projeto denominado Porto Maravilha. A área está contida na Baixada de Jacarepaguá, Zona Especial 5 objeto do Plano Piloto do arquiteto e urbanista Lúcio Costa ao final da década de 1960 .

O curtíssimo prazo de 12 dias em que o Projeto de Lei Complementar (PLC) foi apresentado – oficialmente pelas Comissões e não pelo Poder Executivo, votado com 38 votos a favor, 7 votos contrários, 4 abstenções e 2 ausências, e aprovado em Segunda Discussão, gerou uma série de questionamentos e polêmicas que encontraram eco na imprensa escrita e on-line, em destaque o Editorial do jornal carioca O Globo, no dia 07 do corrente com o título Sob Suspeita, e as manifestações contrárias de arquitetos, urbanistas, ambientalistas e alguns parlamentares.

A lei proposta é extensa e complexa: o Projeto de Estruturação Urbana em questão, apelidado PEU Vargens, discorre sobre as condições de ocupação da área em 113 artigos, vários anexos, e mapas que pretendem definir novos rumos para a ocupação da região de modo a incentivar a construção, promover a ocupação formal, e, indiretamente legalizar e estancar o crescimento de construções irregulares e invasões, prática recorrente na região.

Entre outras novidades, o novo texto prevê a aplicação da outorga onerosa do direito de construir, mediante contrapartida, em dinheiro, em troca do aumento de índices urbanísticos, a saber: aumento de gabaritos de altura, número de pavimentos, Índice de Aproveitamento da Área (IAT), taxas de ocupação e coeficientes de adensamento - e até mesmo a redução do tamanho dos lotes - que levam necessariamente à redução de áreas livres e taxas de permeabilidade, para citar apenas algumas das inúmeras mudanças físicas que resultarão das novas regras. O formato do PLC ainda aumenta o percentual de áreas a serem obrigatoriamente doadas ao município quando da aprovação de loteamentos e da construção de maior número de unidades residenciais e, paradoxalmente e a um só tempo, permite que essa doação de terras, para praças e escolas, por exemplo, possa ser dispensada em alguns casos, desde que o valor correspondente às mesmas seja pago à municipalidade, também em dinheiro.

É provável que mesmo os profissionais familiarizados com a intrincada legislação urbanística do Rio de Janeiro tenham dificuldades para compreender a aplicação da nova lei e suas as complicadas equações, embora seja notório que o texto contempla o grande adensamento dos bairros e altera o potencial construtivo para mais, em região sabidamente carente de infra-estrutura urbana.

Fica evidente que se trata de um instrumento de arrecadação criado no corpo de uma lei dita do Planejamento Urbano. Ou vice-versa. Entretanto, a compra de gabaritos e áreas de construção a mais que a lei oferta, mediante pagamento em dinheiro, não é garantida, tampouco a aplicação desses recursos – se vierem – na própria região. Por isso as mudanças nos bairros atingidos dependerão não apenas do poder público, mas, naturalmente, do desejo e da capacidade do mercado imobiliário que, ao eleger o lugar onde pretende atuar torna concretos os volumes definidos pelas normas e pode influenciar não apenas o aspecto físico dos bairros ou a demanda por transporte e serviços, mas até mesmo a mudança do perfil social dos moradores locais.

Neste aspecto restaria ainda analisar se a aplicação da outorga onerosa é adequada ao lugar, não apenas do ponto de vista técnico e da receptividade, mas quanto à conceituação estabelecida no Estatuto das Cidades, segundo a qual os índices construtivos máximos estabelecidos para venda devem considerar a proporcionalidade entre a infra-estrutura existente e o aumento de densidade esperado em cada área, sendo esta desprovida, conforme já referido.

Muito grave e procedente é a queixa generalizada que recai sobre a ausência de transparência do processo, desenvolvido sem divulgação e sem a prévia discussão com os diversos segmentos da sociedade organizada, conforme determinam a Lei Orgânica do Município e o Plano Diretor da cidade, não obstante seja a condução do Planejamento Urbano realizada pelos representantes desta mesma sociedade e da população como um todo. Contudo, com a aprovação na Câmara Municipal do PEU das “Vargens”, bem mais do que índices urbanísticos atrativos para os grandes empreendedores do setor imobiliário e o adensamento da região, o que está em jogo é o futuro da cidade.

A partir de uma visão geral, com a nova lei abre-se mais área para os setores de maior porte da iniciativa privada e amplia-se a demanda por recursos públicos em detrimento de tantos outros bairros consolidados que precisam de investimentos. Ao mesmo tempo, dá-se prosseguimento ao questionado modelo urbanístico da Barra da Tijuca e estimula-se a cidade espraiada e sem fim, pela expansão significativa da malha urbana a ser adensada, concorrente e na direção oposta, por exemplo, do importante projeto para Zona Portuária da Cidade do Rio de Janeiro que também pretende atrair novos investidores com a oferta de índices de construção diferenciados mediante a compra de títulos públicos e que, portanto, poderá até ficar comprometido; concorrente com os bairros próximos da Região Central e da Zona Norte do Rio, carentes de investimentos públicos e, por esta razão, pouco atrativos para a construção civil; concorrente e espantosamente na contramão das ações pelo desaquecimento global, não apenas pela diminuição de áreas permeáveis, mas pelo estímulo à ocupação exacerbada de áreas frágeis do ponto de vista ambiental e sujeitas a alagamentos, mas também pela desconcentração urbana iniciada justamente na Baixada de Jacarepaguá sob a bandeira do urbanismo dito progressista, e que exige maiores deslocamentos e serviços em país que depende principal e quase exclusivamente do transporte rodoviário.

O exame detalhado do texto em pauta revela outros aspectos da proposta que merecem a devida atenção.

A regulamentação do Plano Piloto deu-se com a divisão da Zona Especial 5 em Subzonas e a fixação respectiva dos índices de aproveitamento. Para efeito da aplicação dos novos parâmetros construtivos o projeto de lei reagrupa e divide mais uma vez o território correspondente a dezoito subzonas ou trechos destas, rebatizando as manchas urbanas de Setores. Os onze setores denominados de A a L (salta-se a letra K) são, por sua vez, redivididos em zonas, cada qual com suas especificidades de uso e ocupação (Figura 4 – mapa dos setores). As diferenças entre a norma em vigor e a lei proposta podem ser verificadas nos mapas e tabelas comparativos das figuras 1 a 4. Cabe aqui observar que, apesar das críticas que os conceitos do Plano Piloto vêm sofrendo ao longo de sua vigência, houve cuidado com a proteção de monumentos naturais tombados e paisagens notáveis – temas inexplicavelmente ignorados no texto novo - bem como foi prevista a ocupação residencial de baixa densidade nas áreas frágeis a oeste, mantido o uso agrícola concomitante original da ocupação do local.

Detalhes que poderiam passar despercebidos comprovam que o desenho urbano e o perfil construído previstos são intencionais. Por exemplo, com artigo que indiretamente estimula a construção de prédios altos ao limitar o gabarito dos prédios colados nas divisas dos terrenos, a 3 andares; no dispositivo que aumenta as dimensões máximas das quadras de 100m x 200m para 250m x 250m; no item que libera a extensão das vias interiores (ruas particulares dentro dos terrenos, isto é, que não são logradouros públicos) ad infinitum; no artigo que aumenta a distância tradicional dos prédios em relação às ruas de 20m para 200m; na permissão para que os núcleos habitacionais com torres altas restritos a alguns locais nas diretrizes de Lucio Costa sejam multiplicados em subzonas antes proibidas aos conjuntos verticais: ou seja, trata-se de um conjunto de definições que resultam claramente no modelo de cidade que poderia ser chamado de aberto/fechado: aberto pela distância entre as construções e pela distância destas, das ruas; fechado por produzir redutos de luxo acessíveis para poucos.

Há também sutilezas, como um discreto parágrafo a impedir que se façam restrições a atividades geradoras de incômodo ambiental já instaladas. Ou a ampliação do número de favelas que passam a ser intocáveis, mesmo estando, por exemplo, em áreas de risco para moradores, enquanto estes deveriam ser transferidos para locais seguros. Ou os itens que diminuem o tamanho dos lotes. Ou a mesquinha diminuição da largura das calçadas de 2,50m para 2,00m. Ou a permissão para construir na vizinhança de morros tombados. Ou...

Igualmente preocupante é a criação dos chamados “Lotes Molhados” produzidos com aterros e alcançáveis também através de canais navegáveis. Sem definição exata de localização obviamente destina-se à ocupação das áreas alagáveis da região, cortadas por canais e córregos, razão pela qual seria dispensável a proibição mencionada para apenas dois setores: um que fica em área de aclive e outro que consiste em uma pedreira...

Há ainda a questão dos Jogos Olímpicos, usada em alguns fóruns para justificar as mudanças. Ora, o Rio já realizou os Jogos Pan-Americanos com sucesso. O Rio será capaz de realizar os bem-vindos JO 2016, que acontecerão, com ou sem o PEU Vargens, talvez melhor sem a lei veloz e os possíveis e indesejáveis impactos dela decorrentes.

Esta breve reflexão, bem como a tabela e os mapas comparativos entre as normas vigentes e as que estão por vir permitirão aos interessados de um modo geral e aos responsáveis pelo encaminhamento a proposta analisá-la mais uma vez em profundidade e refletir sobre as conseqüências prejudiciais para o Rio de Janeiro, que podem levar uma ou mais décadas, mas virão.

A decisão sobre o modelo urbanístico das Vargens pode ser tomada a qualquer momento, mas a lei que estende a urbe carioca poderia ser substituída conforme as reais necessidades da região. Será que ainda há tempo de evitar o que pode ser um grave equívoco? Para que o Rio encontre o melhor caminho sob as luzes de um debate público?

http://www.vitruvius.com.br/minhacidade/mc284/mc284.asp

0 comentário "PEU Vargens, ainda há tempo?"